quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O deserto é mesmo tão silencioso?

Quando se está sozinho naquele silêncio, ouve-se as batidas do próprio coração. Não existe melhor lugar para quem deseja encontrar a si mesmo.
Também chamados de “homens-azuis”, os tuaregs formam um povo nômade que vive do pastoreio no deserto do Saara.
 
*O tuareg Moussa Ag Assarid, acaba de publicar, na França: “Não existe engarrafamento no deserto!”
- Não conheço minha idade: nasci no deserto do Saara, sem endereço nem documentos…! Nasci num acampamento nômade tuareg entre Timbuctú e Gao, ao norte do Mali. Fui pastor dos camelos, cabras, cordeiros e vacas que pertenciam a meu pai. Hoje, estudo Administração na Universidade de Montpellier, no sul da França. Estou solteiro. Defendo os pastores tuaregs. Sou muçulmano, mas sem fanatismo.
Que turbante bonito!
É apenas um tecido fino de algodão: permite cobrir o rosto no deserto quando a areia se levanta e, ao mesmo tempo, você pode continuar vendo e respirando através dele.
Sua cor azul é belíssima…
 
Ela é a razão pela qual chamam a nós, tuaregs, de homens-azuis: o tecido aos poucos desbota e tinge nossa pele com tons azulados.
Como vocês produzem esse intenso azul anil?
Com uma planta chamada índigo, misturada a outros pigmentos naturais. O azul, para os tuaregs, é a cor do mundo.
Por que?
É a cor dominante: a do céu, a do teto da nossa casa.
Quem são os tuaregs?
Tuareg significa “abandonado”, porque somos um velho povo nômade do deserto, um povo orgulhoso: “Senhores do Deserto”, nos chamam. Nossa etnia é a amazigh (berbere), e nosso alfabeto, o tifinagh.
Quantos vocês são?
Cerca de três milhões, a maioria ainda nômades. Mas a população diminui… “É preciso que um povo desapareça para que percebamos que ele existia!” denunciou certa vez um sábio: eu luto para preservar o meu povo.
A que ele se dedica?
Ao pastoreio de rebanhos de camelos, cabras, cordeiros, vacas e asnos, num reino feito de infinito e de silêncio.
O deserto é mesmo tão silencioso?
Quando se está sozinho naquele silêncio, ouve-se as batidas do próprio coração. Não existe melhor lugar para quem deseja encontrar a si mesmo.
Que recordações da sua infância no deserto você conserva com maior nitidez?
Acordo com o sol. Perto de mim estão as cabras de meu pai. Elas nos dão leite e carne, nós as conduzimos onde existe água e grama… Assim fez meu bisavô, meu avô e meu pai… E eu. No mundo não havia nada além disso, e eu era muito feliz assim!
Bem, isso não parece muito estimulante…
Mas é, e muito. Aos sete anos de idade, já permitem que você se afaste do acampamento e descubra o mundo sozinho, e para isso lhe ensinam coisas importantes: a cheirar o ar, a escutar e ouvir, a aguçar a visão, a se orientar pelo sol e as estrelas… E a se deixar conduzir pelo camelo; se você se perde, ele lhe conduzirá onde existe água.
Esse é um conhecimento muito valioso, não há dúvida…
Lá tudo é simples e profundo. Existem poucas coisas no deserto, e cada uma delas possui grande valor.
Assim sendo, este mundo e aquele são bem diferentes, não é mesmo?
Lá, cada pequena coisa proporciona felicidade. Cada roçar é valioso. Sentimos uma enorme alegria pelo simples fato de nos tocarmos, de estarmos juntos! Lá ninguém sonha com chegar a ser, porque cada um já é.
O que mais o chocou ao chegar pela primeira vez na Europa?
Ver a gente correr nos aeroportos. No deserto, só corremos quando uma tempestade de areia se aproxima. Fiquei assustado, é claro…
Corriam para buscar suas bagagens…
Sim, devia ser isso. Também vi cartazes mostrando moças nuas: por que essa falta de respeito para com a mulher?, Perguntei-me… Depois, no Hotel Íbis, vi uma torneira pela primeira vez em minha vida: vi a água correr… e tive vontade de chorar.
Que abundância, que desperdício, não é mesmo?
Até então, todos os dias da minha vida tinham sido dedicados à procura d’água. Até hoje, quando vejo as fontes e chafarizes decorativos que existem aqui, sinto uma dor imensa dentro de mim.
E por que?
No começo dos anos 90 houve uma grande seca, os animais morreram, nós adoecemos… Eu tinha uns doze anos, e minha mãe morreu… Ela era tudo para mim. Contava-me histórias e ensinou-me a contá-las bem. Ensinou-me a ser eu mesmo.
Que aconteceu com sua família?
Convenci meu pai a deixar-me frequentar a escola. Todos os dias eu caminhava quinze quilômetros para chegar até ela. Até que um professor arrumou uma cama para eu dormir, e uma senhora me dava comida quando eu passava em frente à sua casa. Entendi: era minha mãe que me ajudava…
De onde veio essa paixão pelos estudos?
Dois anos antes, o rally Paris-Dakar passou pelo nosso acampamento, e caiu um livro da mochila de uma jornalista. Eu o apanhei e devolvi a ela. Mas ela me deu o livro de presente e disse que ele se chamava “O Pequeno Príncipe”. Naquele instante prometi a mim mesmo que um dia seria capaz de lê-lo…
E você conseguiu?
Sim. Foi assim que consegui uma bolsa para estudar na França…
Um tuareg na universidade!
Do que mais tenho saudade é do leite de camela. E do fogo de madeira. E de caminhar descalço sobre a areia tépida. E das estrelas: lá, nós as admiramos todas as noites, e cada estrela é diversa da outra, como cada cabra é diversa da outra. Aqui, à noite, vocês ficam vendo televisão.
Sim. Na sua opinião, qual é a pior coisa que existe aqui?
A insatisfação. Vocês têm tudo, mas nada lhes é suficiente. Vivem se queixando. Na França, passam a vida queixando-se. Vocês se acorrentam por toda a vida a um banco por causa de um empréstimo, e existe essa ânsia de possuir, essa correria, essa pressa. No deserto não existem engarrafamentos, sabe por que? Porque lá ninguém quer passar à frente de ninguém!
Relate um momento de felicidade intensa que você viveu no seu distante deserto.
Esse momento ali se repete a cada dia, duas horas antes do pôr-do-sol: o calor diminui, o frio da noite ainda não chegou, homens e animais retornam lentamente ao acampamento e seus perfis aparecem como recortes contra o céu que se tinge de rosa, azul, vermelho, amarelo, verde…
É fascinante. E então… Esse é um momento mágico… Entramos todos na tenda e fervemos a água para o chá. Sentados, em silêncio, escutamos o barulho da água que ferve… A calma toma conta de nós… As batidas do coração entram no mesmo compasso dos gluglus da fervura…
“Que paz… Aqui vocês têm o relógio; lá, temos o tempo.”
 
 

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